quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Meu Rei Roberto


Meu pai sempre foi um cara meio esquisito, fechado no mundo dele. A comunicação com os filhos nunca foi boa, sua interface com o mundo era minha mãe – e a televisão.  Minha mãe sempre, sempre o mimou. Almoço e jantar servidos na bandeja, na sala (mais tarde no quarto dele), em frente à tv – entre outras mordomias. Foi um bom pai, mas infelizmente não posso dizer que fomos amigos. 

Quando chegou aos 83, 84 anos, não sei precisar exatamente em que altura da sua vida, começou a desenvolver sintomas de demência, mas nós não sabíamos. Nem poderíamos saber, pois ele se recusava a ir ao médico, fazer exames, tomar remédios – todas essas ‘besteiras’, segundo ele.  Para todos nós, inclusive minha mãe, eram as  manias de sempre que se cristalizavam com a idade. Caprichos, esquecimentos, confusões, chatices, às vezes passagens engraçadas, tudo ‘coisa de velho’.

Hoje posso ver claramente que os sintomas eram, sim, de demência, mas vieram tão devagarinho, insinuantes, confudidos no quadro geral de boa saúde que ele sempre gozou, que não nos foi possível  àquela altura avaliar, desconfiar e tomar as devidas providências. A falta de paciência com ele crescia na exata medida em que os sintomas se agravavam. Cheguei a considerar a confusão mental como um artifício que ele usara para desvencilhar-se de situações incômodas. Tudo enfim era tomado como a esquisitice de sempre.

A conversa de minha mãe era um eterno resmungar sobre as atitudes dele. Ela queria ajuda, queria que eu dividisse com ela o tempo de cuidados com ele. Eu me recusei e sugeri que ela contratasse alguém que a ajudasse. Cultura de família italiana, espanhola, portuguesa – sei lá. Filha serve para ser cuidadora, não importa se ela trabalha, se ela tem uma vida ou luta para ter uma. Para piorar havia o exemplo da minha prima que cuidava e cuida até hoje dos pais. Foi e é notório o sacrifício que ela fez na sua vida, a anulação de todos os sonhos, o desgaste mental, pessoal e físico que ela apresenta. Minha mãe reagiu muito mal à minha sugestão. Brigamos.

Meu pai  foi se tornando mais e mais recluso, mais e mais enfiado na televisão cuja imagem a catarata (que ele recusou-se a operar) não lhe permitia ver direito. E então as coisas ficaram piores. Ele sofreu o primeiro AVC, ficou internado, recusando-se loucamente a não ficar internado. Recusava a fralda. Tirava a fralda para fazer xixi contra a parede. Falava coisas desconectadas, não entendia, não andava direito, caía. Um homem relativamente grande, minha mãe precisava chamar o porteiro do prédio para levantá-lo do chão.
A crise se instalou, pois era impossível  para ela cuidar de meu pai sozinha. Eu já estava morando no exterior, meu irmão em outro estado. Minha filha encontrou uma agência de cuidadores e Roberto chegou à casa de minha mãe,  totalmente revoltada com as circunstâncias da situação. Acho que Roberto percebeu que o principal problema para cuidar não era meu pai, era a mama, pisando duro, exalando mau humor, tratando-o como o devido estranho que ele era, determinando isso e aquilo, elevando ao grau 10 da escala ritcher aquele tsunami emocional.

E então fez-se a diferença. Roberto, um cara simples, nos seus 40 e tantos anos, gay assumidíssimo, sempre bem humorado, humilde e profundamente conhedor das minúcias de sua profissão. Ele fez a diferença, tratando meu pai com um carinho que há muito tempo o velhinho não experimentava. Rindo com o jorro de xixi que levou na cara, durante a noite, por que meu pai conseguiu se livrar da fralda. Fazendo o mingau de aveia dele, alimentando-o com uma conversinha  tão mole quanto aquela papa. Segurando-o com firmeza no banho, que passou a ser diário, fazendo-lhe a barba, penteando-lhe o cabelo. Elogiando-lhe a aparência, sempre falando bobaginhas carinhosas, sempre bem humorado, sempre exalando amor.

Minha mãe cedeu às evidências. Em pouco menos de uma semana estava apaixonada por Roberto, estava mais calma, sentindo-se livre para fazer suas coisas, viver sua vidinha. Em pouco menos de uma semana, o tsunami tornou-se um paraíso e fez-se a paz.

Meu pai sofreu outros AVCs, foi Roberto que detectou o problema, chamou a ambulância e providenciou tudo. Foram 30 dias de semi-uti, tubos, coma profundo. Roberto ficou com minha mãe, esteve todos os dias com ela no hospital, recebeu o telefonema do óbito e a amparou no momento difícil. Hoje eles são amigos. De vez em quando ela o avisa com antecedência, ele pede folga do serviço e vai com ela ao bingo. Ou a acompanha para fazer um exame médico. Ou simplesmente pra jogar uma conversinha fora, tomando um café que ele mesmo faz por que não gosta do café dela.

Ele é meu Rei Roberto. Ele foi  aquela fortaleza emocional em que você debruça seus problemas e chora suas mágoas, que te educa com o exemplo que dá.  Eles nos ensinou a todos como é simples amar um idoso – por mais chato que ele seja. Que Deus o abençoe, Roberto querido!

Angela Arantes Tucker
Cliente da Life Angels


Nenhum comentário:

Postar um comentário