Meu pai
sempre foi um cara meio esquisito, fechado no mundo dele. A comunicação com os
filhos nunca foi boa, sua interface com o mundo era minha mãe – e a televisão. Minha mãe sempre, sempre o mimou. Almoço e
jantar servidos na bandeja, na sala (mais tarde no quarto dele), em frente à tv
– entre outras mordomias. Foi um bom pai, mas infelizmente não posso dizer que
fomos amigos.
Quando chegou aos 83, 84 anos, não sei precisar exatamente em que
altura da sua vida, começou a desenvolver sintomas de demência, mas nós não
sabíamos. Nem poderíamos saber, pois ele se recusava a ir ao médico, fazer
exames, tomar remédios – todas essas ‘besteiras’, segundo ele. Para todos nós, inclusive minha mãe, eram
as manias de sempre que se cristalizavam
com a idade. Caprichos, esquecimentos, confusões, chatices, às vezes passagens
engraçadas, tudo ‘coisa de velho’.
Hoje posso
ver claramente que os sintomas eram, sim, de demência, mas vieram tão
devagarinho, insinuantes, confudidos no quadro geral de boa saúde que ele
sempre gozou, que não nos foi possível àquela altura avaliar, desconfiar e tomar as
devidas providências. A falta de paciência com ele crescia na exata medida em
que os sintomas se agravavam. Cheguei a considerar a confusão mental como um
artifício que ele usara para desvencilhar-se de situações incômodas. Tudo enfim
era tomado como a esquisitice de sempre.
A conversa
de minha mãe era um eterno resmungar sobre as atitudes dele. Ela queria ajuda,
queria que eu dividisse com ela o tempo de cuidados com ele. Eu me recusei e
sugeri que ela contratasse alguém que a ajudasse. Cultura de família italiana,
espanhola, portuguesa – sei lá. Filha serve para ser cuidadora, não importa se
ela trabalha, se ela tem uma vida ou luta para ter uma. Para piorar havia o
exemplo da minha prima que cuidava e cuida até hoje dos pais. Foi e é notório o
sacrifício que ela fez na sua vida, a anulação de todos os sonhos, o desgaste
mental, pessoal e físico que ela apresenta. Minha mãe reagiu muito mal à minha
sugestão. Brigamos.
Meu pai foi se tornando mais e mais recluso, mais e
mais enfiado na televisão cuja imagem a catarata (que ele recusou-se a operar)
não lhe permitia ver direito. E então as coisas ficaram piores. Ele sofreu o
primeiro AVC, ficou internado, recusando-se loucamente a não ficar internado. Recusava
a fralda. Tirava a fralda para fazer xixi contra a parede. Falava coisas
desconectadas, não entendia, não andava direito, caía. Um homem relativamente
grande, minha mãe precisava chamar o porteiro do prédio para levantá-lo do
chão.
A crise se
instalou, pois era impossível para ela
cuidar de meu pai sozinha. Eu já estava morando no exterior, meu irmão em outro
estado. Minha filha encontrou uma agência de cuidadores e Roberto chegou à casa
de minha mãe, totalmente revoltada com as
circunstâncias da situação. Acho que Roberto percebeu que o principal problema
para cuidar não era meu pai, era a mama, pisando duro, exalando mau humor, tratando-o
como o devido estranho que ele era, determinando isso e aquilo, elevando ao
grau 10 da escala ritcher aquele tsunami emocional.
E então
fez-se a diferença. Roberto, um cara simples, nos seus 40 e tantos anos, gay
assumidíssimo, sempre bem humorado, humilde e profundamente conhedor das
minúcias de sua profissão. Ele fez a diferença, tratando meu pai com um carinho
que há muito tempo o velhinho não experimentava. Rindo com o jorro de xixi que
levou na cara, durante a noite, por que meu pai conseguiu se livrar da fralda.
Fazendo o mingau de aveia dele, alimentando-o com uma conversinha tão mole quanto aquela papa. Segurando-o com
firmeza no banho, que passou a ser diário, fazendo-lhe a barba, penteando-lhe o
cabelo. Elogiando-lhe a aparência, sempre falando bobaginhas carinhosas, sempre
bem humorado, sempre exalando amor.
Minha mãe
cedeu às evidências. Em pouco menos de uma semana estava apaixonada por Roberto,
estava mais calma, sentindo-se livre para fazer suas coisas, viver sua vidinha.
Em pouco menos de uma semana, o tsunami tornou-se um paraíso e fez-se a paz.
Meu pai
sofreu outros AVCs, foi Roberto que detectou o problema, chamou a ambulância e
providenciou tudo. Foram 30 dias de semi-uti, tubos, coma profundo. Roberto ficou
com minha mãe, esteve todos os dias com ela no hospital, recebeu o telefonema
do óbito e a amparou no momento difícil. Hoje eles são amigos. De vez em quando
ela o avisa com antecedência, ele pede folga do serviço e vai com ela ao bingo.
Ou a acompanha para fazer um exame médico. Ou simplesmente pra jogar uma
conversinha fora, tomando um café que ele mesmo faz por que não gosta do café
dela.
Ele é meu
Rei Roberto. Ele foi aquela fortaleza emocional
em que você debruça seus problemas e chora suas mágoas, que te educa com o
exemplo que dá. Eles nos ensinou a todos
como é simples amar um idoso – por mais chato que ele seja. Que Deus o abençoe,
Roberto querido!
Angela
Arantes Tucker
Cliente da
Life Angels
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